quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Eu apresento a página branca

“Contra: Burocratas travestidos de poetas. Sem-graças travestidos de sérios. Anões travestidos de crianças. Complacentes travestidos de justos. Jingles travestidos de rock. Estórias travestidas de cinema. Chatos travestidos de coitados. Passivos travestidos de pacatos. Medo travestido de senso. Censores travestidos de sensores. Palavras travestidas de sentido. Palavras caladas travestidas de silêncio. Obscuros travestidos de complexos. Bois travestidos de touros. Fraquezas travestidas de virtudes. Bagaços travestidos de polpa Bagos travestidos de cérebros. Celas travestidas de lares. Paisanas travestidos de drogados. Lobos travestidos de cordeiros. Pedantes travestidos de cultos. Egos travestidos de eros. Lerdos travestidos de zen. Burrice travestida de citações. Água travestida de chuva. Aquário travestido de tevê água travestida de vinho. Água solta apagando o afago do fogo. Água mole sem pedra dura. Água parada onde estagnam os impulsos. Água que turva as lentes e enferruja as lâminas. Água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções, insípida, amorfa, inodora, incolor. Água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky. Água onde não há seca. Água onde não há sede. Água em abundância. Água em excesso. Água em palavras. Eu apresento a página branca. A árvore sem sementes. O vidro sem nada na frente. Contra a água.”

(Arnaldo Antunes)

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