terça-feira, 5 de março de 2013
Uma Criatura
“Sei de uma criatura antiga e formidável, que a si mesma devora
os membros e as entranhas, com a sofreguidão da fome insaciável. Habita juntamente
os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga, à maneira do abismo, espreguiça-se
toda em convulsões estranhas. Traz impresso na fronte o obscuro despotismo; Cada
olhar que despede, acerbo e mavioso, parece uma expansão de amor e egoísmo. Friamente
contempla o desespero e o gozo, gosta do colibri, como gosta do verme, e cinge
ao coração o belo e o monstruoso. Para ela o chacal é, como a rola, inerme; Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo vem
a folha, que lento e lento se desdobra, depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra: Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o
fruto, e é nesse destruir que as suas forças dobra. Ama de igual amor o poluto
e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida; E sorrindo obedece ao divino
estatuto. Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida. (Machado de Assis)
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